Ao julgar uma reclamação trabalhista de um funcionário de um dos maiores frigoríficos do País, que pedia registro em carteira e pagamento de horas extras, o juiz do trabalho de Iturama, cidade de 35 mil habitantes no Triângulo Mineiro, foi muito além do que estava sendo pleiteado. Ele não só deu ganho de causa ao reclamante, como também condenou a empresa a pagar indenização por "dumping social". A decisão, que acaba de ser confirmada pela Quarta Turma do Tribunal Regional do Trabalho (TRT) de Minas Gerais, causou surpresa nos meios jurídicos e empresariais.O motivo é que o "dumping" - uma prática desleal de comércio - não está previsto pela legislação trabalhista e jamais foi objeto do direito do trabalho. Pelo contrário, desde o Acordo Geral de Tarifas e Comércio (Gatt), de 1947, ele tem sido tratado somente pelo direito econômico. Atualmente, as diretrizes e sanções em matéria de combate a esse tipo de concorrência desleal se encontram tipificadas pelo Código Antidumping da OMC. Ao justificar sua decisão, o juiz afirmou que o frigorífico vinha desrespeitando sistematicamente a legislação trabalhista, com o objetivo de reduzir os custos de produção para ter preços mais competitivos no mercado internacional. Ele também alegou que, além de não registrar os empregados, o frigorífico os submetia a jornadas diárias muito superiores ao permitido por lei, sem pagar horas extras. E, ao fundamentar a decisão, o juiz invocou um "enunciado" em que a Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra) incentiva seus filiados a impor, mesmo sem pedido dos advogados dos reclamantes, severas sanções às empresas que desrespeitam os direitos dos trabalhadores. Para a Anamatra, além de ser uma afronta ao Estado, esse desrespeito provoca danos à sociedade, na medida em que propicia vantagens comerciais indevidas aos empregadores. O "enunciado" foi aprovado na 1ª Jornada de Direito Material e Processual na Justiça do Trabalho, realizada em 2007. Segundo ele, "agressões reincidentes aos direitos trabalhistas" colidem com "a estrutura do Estado social e do próprio modelo capitalista, motivando a necessária reação do Judiciário Trabalhista". O problema é que a Anamatra, que foi criada em 1976, durante um congresso organizado pelo Instituto Latino-Americano do Direito do Trabalho e Previdência Social, é uma entidade corporativa. Por isso, ela não tem a prerrogativa de legislar. Essa é uma atribuição que cabe ao Congresso. O "enunciado" da Anamatra e a sentença do juiz do trabalho de Iturama configuram mais um caso do que os juristas chamam de "ativismo judicial". Valendo-se de princípios constitucionais, que por serem dispositivos programáticos têm redação vaga ou excessivamente retórica, alguns magistrados interpretam "extensivamente" a legislação, ampliando com isso o alcance de suas competências. Por meio dessa estratégia, por exemplo, muitos juízes de execução penal estão recorrendo a argumentos sociológicos sob a justificativa de "humanizar a pena", enquanto juízes trabalhistas cada vez mais se sentem estimulados a incorporar institutos do direito econômico para a aplicação de sanções mais severas às empresas. É esse o caso do chamado "dumping social". Ele já foi objeto de várias sentenças de primeira instância da Justiça do Trabalho proferidas em Goiás, Rio Grande do Sul, São Paulo e Minas Gerais, tendo resultado em condenações que chegam a R$ 1 milhão. Contudo, essas decisões vinham sendo revertidas pelas instâncias superiores. Agora, com a confirmação do despacho do juiz do trabalho de Iturama pela Quarta Turma do TRT de Minas Gerais, esse quadro pode mudar. O problema do "ativismo" está no fato de que, se por um lado pode beneficiar as partes mais fracas nos litígios trabalhistas, por outro gera insegurança generalizada nos meios empresariais, pois é só uma minoria de empregadores que desrespeita sistematicamente a legislação trabalhista. É por isso que muitos juristas têm recomendado moderação à magistratura trabalhista na aplicação da tese do "dumping social". O receio é de que, sob a justificativa de fazer justiça, a corporação acabe gerando mais problemas do que soluções, prejudicando empregados e empregadores.
Estadão